Os tempos que vivemos são desafiantes a todos os níveis. A vida acontece a um ritmo frenético e, simultaneamente, algumas decisões que antes aconteciam mais cedo tendem a tardar. Sai-se de casa mais tarde, acaba-se a formação académica muitas vezes já perto dos 30 anos devido à exigência de maiores graus, os planos familiares ficam adiados e assim, por consequência, os filhos.
Por razões económicas, sociais ou de saúde, a maternidade nem sempre é possível na altura mais desejada o que, no caso da mulher, pode tornar-se mais complexo com o avançar da idade. A ciência, felizmente, tem feito progressos nesse sentido e hoje em dia existem soluções como a criopreservação de ovócitos. Mas conhecemos realmente esta opção? Qual a idade para o procedimento e por quem pode ser feito? Quais os riscos e a taxa de sucesso? E é somente uma técnica para quando a maternidade fica para mais tarde?
A VERSA colocou estas e outras questões à ginecologista Daniela Sobral, do Hospital Lusíadas de Lisboa, que esclarece todas as dúvidas sobre a criopreservação de ovócitos.
Em que consiste o processo da criopreservação de ovócitos?
A criopreservação de ovócitos é uma técnica de procriação medicamente assistida (PMA) que tem como objectivo preservar o potencial reprodutivo congelando gametas para uso futuro. À medida que o conhecimento e as normas sociais continuam a evoluir, a procura e o acesso à criopreservação aumentará.
Todos os médicos que cuidam de mulheres em idade reprodutiva precisam estar cientes de que a criopreservação de ovócitos é uma opção para permitir ter filhos geneticamente relacionados para aquelas que enfrentam perda de fertilidade iatrogénica [refere-se à incapacidade de engravidar causada por intervenções médicas ou tratamentos] ou relacionada à idade. Muitos avanços foram feitos na criopreservação de ovócitos desde o primeiro nascimento com ovócito congelado em 1986, sendo considerada neste momento uma técnica eficaz.
Para avançar com este processo é usualmente realizada uma consulta com uma história clínica detalhada e exames para avaliar a reserva ovárica, como a Hormona antimulleriana (análise sanguínea), e uma ecografia ginecológica para a contagem do número de folículos antrais. O tratamento compreende uma fase inicial de estimulação ovárica com injeções hormonais subcutâneas.
Hoje em dia recorremos a estimulações cada vez mais “patient friendly”, conseguindo por vezes fazer uma estimulação recorrendo apenas a duas ou três injeções. Estas injeções são por norma muito bem toleradas. A estimulação tem como objectivo um crescimento sincronizado dos folículos e é controlada por ecografia e, eventualmente, análises. Segue-se a punção transvaginal ecoguiada dos ovários para aspiração do liquido folicular realizada sob sedação e os ovócitos maduros são congelados. O processo demora umas 2 semanas.
Por razões várias, pode haver necessidade de interromper o ciclo de tratamento antes da punção para obtenção dos ovócitos, a mais frequente das quais é a resposta insuficiente ou dessincronizada dos ovários à medicação. No dia da colheita dos ovócitos, sendo uma cirurgia de ambulatório (em que se vai para casa no próprio dia) a mulher tem que sair acompanhada do centro e estar acompanhada 24 h.
Existe garantia de que os ovócitos ficam bem conservados?
Desde há muitos anos (2013) que a criopreservação de ovócitos já não é considerada uma técnica experimental. Dado o grande conteúdo de água, os ovócitos são muito susceptíveis ao dano provocado pelo congelamento e descongelamento mas, hoje em dia, o processo de vitrificação (congelamento rápido) evita a formação de cristais e isso revolucionou a taxa de sobrevida ovocitária, tornado a opção de congelamento de ovócitos muito mais viável. Segundo alguns trabalhos, obtendo resultados comparáveis aos da utilização de ovócitos frescos.
A criopreservação de ovócitos tem riscos para a mulher?
As complicações relacionadas com a estimulação são o síndrome de hiperestimulação ovárica que hoje em dia, com os protocolos que utilizamos, é muito raro. Existem também os riscos de torção anexial e tromboembolismo ainda mais raros.
A punção ovocitária é muito segura, mas como qualquer procedimento cirúrgico há riscos anestésicos (alérgicos e outros) e riscos de infeção e hemorragia. É fundamental o jejum absoluto de 6h previamente à cirurgia e o repouso após a mesma.
As complicações podem, em situações muitíssimo raras, justificar internamento hospitalar, reintervenção cirúrgica e, em circunstâncias verdadeiramente excecionais, podem mesmo colocar a vida em risco.
No que diz respeito ao eventual risco aumentado de cancro associado às técnicas, os estudos não demonstram associação significativa com a ocorrência de cancro do ovário, endométrio ou colo do útero. Uma revisão de estudos publicados não identificou risco aumentado de abortos ou malformações, também não foram encontradas diferenças entre as complicações maternas/perinatais.
Em relação aos riscos para a descendência os estudos ainda são limitados, mas até agora bastante tranquilizadores. Mesmo que sejam realizadas várias colheitas de ovócitos a mulher não terá um maior risco de entrar em menopausa mais cedo.
Qual a idade ideal para congelar óvulos?
A ESHRE (European Society of Human Reproduction and Embryology) recomenda que seja realizada antes dos 35 anos, o limite superior de idade normalmente usado por programas de doadores de ovócitos, e não deve ser recomendada após os 38 anos. No entanto, aparecem muitas mulheres com mais idade. Realmente a idade ideal seria entre os 25 e os 35 anos, quanto mais cedo for realizada a colheita menor a probabilidade de os ovócitos virem a ser utilizados.
As mulheres que criopreservam os ovócitos mais tarde necessitam de realizar mais ciclos, têm menos ovócitos por ciclo e cada um com menos ovócitos congelados. A sobrevivência dos mesmos ao descongelamento pode ser menor. Mas essas mulheres são as que apresentam maior taxa de utilização dos mesmos.
Cada vez mais a maternidade fica para planos tardios. Este é o único motivo pelo qual faz sentido congelar os óvulos?
A criopreservação de ovócitos foi inicialmente desenvolvida para ser utilizada em mulheres com indicação para tratamento citotóxico (quimio/radioterapia) nas situações oncológicas ou outras doenças graves, por exemplo autoimunes. É uma técnica que está também indicada em doenças genéticas que levem à perda precoce da função ovárica, por exemplo, síndrome de Turner, previamente a uma intervenção cirúrgica aos ovários (por exemplo na endometriose) e também previamente aos tratamentos de transição de género.
A criopreservação de ovócitos é também utilizada nos casos de tratamentos Procriação Medicamente Assistida (PMA), nos quais a resposta é baixa e queremos acumular ovócitos ou em situações em que na altura da colheita ovocitária não temos esperma disponível por ausência ou dificuldades na colheita.
No momento de dar uso aos ovócitos, há 100% de certeza de uma fecundação bem sucedida?
A criopreservação de ovócitos NUNCA é uma garantia de gravidez, é apenas uma reserva de células reprodutoras femininas que poderão vir a ser utilizadas no futuro através da Microinjeção Intracitoplasmática de Espermatozoide (ICSI: Intracytoplasmic Sperm Injection).
Quando se usam os ovócitos a taxa de sobrevida ao descongelamento é por volta de 95%, podendo ser mais baixa em mulheres com mais de 35 anos. Depois, na técnica de fertilização utilizada, a ICSI (em que se introduz um espermatozoide em cada ovócito), a taxa de fertilização será por volta de 70 a 80% e a evolução para embrião vai depender da idade da mulher quando congelou os ovócitos e da qualidade do esperma. Dos embriões obtidos um será transferidos para o útero da mulher e se existirem embriões excedentários com qualidade estes podem estar congelados.
Como escolher o melhor local para o procedimento?
Neste momento só é possível recorrer ao SNS no caso de preservação médica da fertilidade, na preservação social as mulheres têm que recorrer ao sistema privado. Os custos associados à medicação dependem da resposta do ovário, mas rodam os 300 euros. A colheita dos ovócitos será por volta de 1.500 euros e o congelamento dos mesmos por 5 anos entre 650 e 1.000 euros. No total ficará menos de 3.000 euros.
Uma das questões mais frequentes é quantos ovócitos devem ficar congelados. Essa resposta tem que ser individualizada, dependo da idade da mulher e do seu projecto de família (se quer ter um, dois, três ou mais filhos...). A criopreservação de 20 ovócitos antes dos 38 anos parece dar uma probabilidade de nado vivo em casa de aproximadamente 70% (Cascante 2023).
É fundamental informar as mulheres desta possibilidade que, sem dúvida, vai aumentar a sua autonomia reprodutiva. Os motivos para adiar a maternidade são múltiplos, não terem um parceiro, motivos profissionais, ambiguidade em relação à maternidade, outros. No entanto, o adiar da maternidade pode levar a gravidezes com maior risco de complicações e, por isso, devemos tentar como comunidade criar as condições para a maternidade ocorrer mais cedo.
A criopreservação de tecido ovárico é outra técnica que está a ser desenvolvida e é utilizada principalmente nas mulheres pré-púberes, mas no futuro pode ter outras indicações.
É importante também referir que para realizar este processo é imprescindível o preenchimento de um consentimento informado do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA).
Os ovócitos serão criopreservados por um período de cinco anos. Neste período a mulher deve deslocar-se ao centro para assinar um consentimento de manutenção desta congelação. Na ausência dessa declaração os ovócitos serão descongelados e eliminados, a menos que haja autorização para o seu uso para doação a pessoa(s) beneciária(s) de tratamento de Procriação Medicamente Assistida (PMA) e/ou para uso em projetos de investigação cientíca. Em caso de doação a pessoa(s) beneficiária(s) de tratamento de PMA, as pessoas nascidas com recurso a dádiva de gâmetas podem obter, junto dos competentes serviços de saúde, informações de natureza genética que lhes digam respeito, bem como obter junto do CNPMA informação sobre a identificação civil da dadora, desde que possuam idade igual ou superior a 18 anos. O limite de utilização dos ovócitos em Portugal é aos 50 anos da mulher.