Pouco antes de morrer, William Klein voltou a mergulhar na obra de Shakespeare. O fotógrafo, cineasta e pintor norte-americano, nome incontornável das artes visuais do século XX que morreu em 2022, aos 96 anos, já lera o poeta e dramaturgo inglês durante a adolescência, comenta David Campany, investigador e curador de O Mundo Inteiro É um Palco, a primeira exposição retrospetiva de Klein na Europa depois da sua morte. É a partir dessa reaproximação do fotógrafo ao poeta inglês nos últimos anos de vida, dessa ideia shakesperiana de que o mundo é, no fundo, um palco, e que cada homem e mulher desempenham um papel, que nasce o título desta ambiciosa exposição que dá a conhecer a vasta obra de Klein e as suas várias dimensões e valências enquanto artista visual.
“É uma ideia muito kleiniana, essa. Ele realmente entendia os humanos como pessoas que estão sempre a atuar de alguma forma. Mas mais do que isso, Klein, como criador de imagens, estava sempre a interagir com as pessoas. Por isso, quando ele está na rua, não está a fingir ser invisível. Tem curiosidade pelas pessoas, faz-lhes perguntas, fala com elas, pergunta-lhes se querem ser fotografadas, e desse pequeno momento espontâneo nasce uma imagem”, elabora Campany, um dos críticos e investigadores mais conceituados da atualidade na área da fotografia, ao entrar numa das cinco salas (Olhar para trás, Gestos materiais, Tóquio, Filmes e Juntos) que compõem a mostra que fica patente no MAAT, em Lisboa, até ao início de fevereiro do próximo ano.
“Se estivermos no meio da sala, se olharmos em redor, aqui está William Klein; Klein a ser olhado por toda a gente em diferentes lugares. Há aqui imagens de Moscovo, Roma, Nova Iorque. Ele adorava estas grandes ampliações. Portanto, esta é uma pequena sala introdutória. E é a minha homenagem. Se estiveres no meio da sala, podes ser William Klein”, diz o curador da exposição que também mostra as primeiras pinturas abstratas do artista, datadas de 1948, ou as primeiras experiências com imagem em movimento realizadas no final dos anos 1950.
“Klein era uma figura interessante porque fazia de tudo: fotografia, trabalho abstrato, fotografia de rua, moda. Fazia livros. Também desenhava esses livros; escrevia os livros; fazia as capas dos livros. Era pintor, figurativo e abstrato. Era realizador de documentários e de longas-metragens”, enumera David Campany, sublinhando que tamanha versatilidade num artista pode torná-lo menos compreensível e aumentar o risco de que o público se foque apenas numa pequena parte da sua obra. “Há um público que conhece Klein como fotógrafo de rua, as pessoas da moda conhecem-no como fotógrafo de moda, as pessoas interessadas na história do cinema experimental conhecem os seus filmes, mas esta é uma exposição que junta tudo. E eu juntei tudo à volta desta ideia de performance, de teatralidade.”
A vida de Klein mudaria para sempre quando, em Paris, conheceu Alex Lieberman, editor da Vogue Americana. David Campany é capaz de reconstituir, depois de extensas entrevistas com o artista, o diálogo que Klein terá tido com o responsável da revista de moda. “Gosto da tua sensibilidade visual. Volta para Nova Iorque, trabalha para a Vogue”, ter-lhe-á dito Lieberman. Nunca tinha usado uma câmara fotográfica e não tinha ambições de ser fotógrafo, “mas porque não?” terá respondido Klein, impondo apenas uma condição: que lhe fosse dada liberdade para fotografar na rua.
“Começa a fotografar nas ruas de Nova Iorque em 1954, ao mesmo tempo que tira fotografias de moda. Vai para a rua com uma câmara que comprou a Henri Cartier-Bresson e faz fotografias que são completamente o oposto da Vogue. São corajosas. São perigosas. Parece que não têm boas maneiras.”
A experimentação com a imagem foi uma constante na obra de Klein. Essa irrequietude visual está patente nas provas fotográficas que podemos ver referentes a uma exposição de pintura abstrata da sua autoria em 1952. “Quando estava a fotografar os painéis da exposição, a sua mulher, Jeanne, rodou um dos painéis numa exposição de longa duração e Klein viu um borrão. Ficou muito interessado naquela sala e fez fotografias abstratas como estas durante um ano. Por vezes pintava por cima delas, outras vezes voltava a fotografá-las para as poder ampliar ou inverter ou mudá-las de positivo para negativo, brincando e elaborando desenhos abstratos que pareciam ser quase como sequências de títulos de filmes ou algo do género”, elucida Campany, ao apontar para um caderno de argolas repleto de fotografias desta fase.
Dez anos depois, em 1962, Klein faria uma das suas fotografias de moda mais conhecidas com base nessas experiências. “Imaginem o estúdio da Vogue em escuridão total. Sem luzes, nada. A câmara está num tripé. Ele tem alguém vestido completamente de preto, com uma lanterna. Há uma lanterna estroboscópica para iluminar a modelo”, descreve Campany sobre uma das imagens em que vemos uma modelo iluminada por um feixe de luz que parece impossível de ali estar. “O mais interessante é que, olhem com atenção para esta roupa aqui, a roupa que a modelo está a usar está muito bem fotografada. Vê-se a textura, vê-se a linha, vê-se o corte. E isto é tudo o que eles queriam na Vogue. As roupas tinham de ser mostradas muito bem. E desde que Klein fizesse isso, podia fazer experiências com as imagens como quisesse”, resume.
Uma das salas da exposição que ocupa o MAAT Central é dedicada às icónicas fotografias e documentário de Cassius Clay, também conhecido como Muhammad Ali. “Klein entra num avião em Nova Iorque, no JFK, e dá por ele sentado ao lado de Malcolm X. Tornam-se grandes amigos. Um rapaz judeu da alta da cidade torna-se amigo de Malcolm X, líder da Nação do Islão. Malcolm X era uma espécie de conselheiro espiritual de Cassius Clay. E, assim, Klein teve total acesso quando chegou a Miami a toda a comitiva em torno de Ali.”
Fez um documentário absolutamente eletrizante sobre o jovem Cassius Clay, que era muito carismático, um atleta incrível, mas uma figura política relevante, uma figura perigosa para a América.” Este trabalho elevaria Cassius Clay ao estatuto de estrela internacional e, por sua vez, levaria a que Klein fizesse uma série de outros filmes sobre a experiência negra em África e também na América. “É uma parte muito importante do trabalho de Klein. O primeiro filme de ficção que faz chama-se Who Are You, Polly Magoo. A mulher que está ali no grande mural e também a mulher nas fotografias da lanterna lá em cima, é Dorothy McGowan”, detalha David Campany ao apontar para a imagem em questão. “Era uma mulher da classe trabalhadora de Brooklyn e foi escolhida pela Vogue para ser o novo rosto da moda”, acrescenta Campany sobre um dos trabalhos mais relevantes de Klein enquanto cineasta que é aflorado nesta exposição e, mais tarde, exibido na totalidade numa retrospetiva da obra cinematográfica de Klein na Cinemateca em janeiro de 2025 e no catálogo homónimo que será publicado em breve com a chancela do MAAT.
Uma das últimas salas da exposição transporta-nos para Tóquio, um dos muitos locais onde Klein fotografou e que esteve na origem de um dos fotolivros mais importantes da história da fotografia. Depois de ter sido convidado a fotografar uma companhia de dança avant-garde, Klein decidiu levar os dançarinos para a rua pedindo-lhes que encenassem as suas danças em diferentes bairros da capital japonesa. A experiência frenética desse dia pode ser vivida numa sala escura em que são projetadas as 460 imagens que Klein fez nesse dia, na sua exata sequência cronológica. “Por isso, esta é a melhor oportunidade que temos de estar com Klein, o fotógrafo, num dia muito intenso, ficando com uma ideia de como ele trabalha, qual é a interação. Nunca poderemos estar lá, nunca estivemos lá quando ele tirou as fotografias, por isso nunca saberemos. Mas essa é a melhor sensação que se pode ter. Estou muito satisfeito por ter isto na exposição”, confidencia Campany.
Na última sala, Juntos, encontramos algumas das fotografias mais conhecidas de Klein. Para Campany, estas imagens mostram realmente Klein “como o mestre do tipo de fotografia de grupo espontânea”. “Penso que foi o que Klein fez melhor do que ninguém: estar numa situação com muitas pessoas e conseguir obter uma imagem extraordinária. São imagens de todas as fases da sua carreira, a cores, a preto e branco, fotografias de rua, de África, da Europa, da América”, continua Campany, até direcionar a sua atenção para uma fotografia a cores de 2013 que encerra a exposição. “É muito invulgar um criador de imagens ter uma carreira tão longa, 65 anos a fazer trabalho muito enérgico, não é um velhote calmo. Durante todo esse tempo, as imagens têm uma energia enorme e acho que isso é uma coisa muito corporal. Não há muitas pessoas que o consigam fazer. A maioria dos fotógrafos de rua tem sorte se conseguir ter uma boa década. Klein fê-lo década após década. É espantoso.”
William Klein - O Mundo Inteiro É um Palco. 18 de setembro a 3 de fevereiro de 2025. MAAT, Lisboa. Entrada €8-€11.