O uso abusivo e indevido de expressões artísticas e culturais é tema em constante debate nos dias de hoje e é, por si só, controverso. Aliás, nunca ouvimos tanto o termo “apropriação cultural” como ouvimos agora e só essa questão dava uma discussão para a qual cerro os punhos. Com a mesma facilidade com que apontamos dedos a comportamentos condenáveis, enxotamos a inspiração e a reinterpretação de uma cultura ou forma de arte – o que me parece sempre um julgamento demasiado precoce e irresponsável. Vamos falar de apropriação de arte, sim, mas a cultura foi mencionada com um propósito que mais adiante entenderão.
Feita a reflexão, vamos assistir ao combate que coloca Botticelli e Jean Paul Gautier no mesmo ringue?
Como vos disse, esta coisa de usarmos a arte de outrem está mesmo na moda – e não é só por falarmos muito em apropriações do que quer que seja. O principal museu de arte na Itália, Gallerie degli Uffizi, está a processar a marca de moda francesa Jean Paul Gaultier por usar a imagem da célebre obra “O Nascimento de Vénus” (1485), de Botticelli, nas suas mais recentes criações.
"A conhecida marca de moda usou a imagem da eterna obra-prima que se encontra no museu, para criar algumas peças de vestuário, publicando-as também nas suas redes sociais e site sem pedir autorização, sem concordar com as modalidades de utilização e sem pagar os direitos, conforme expressamente exigido por lei", lê-se em comunicado emitido pelo museu, que se rege pelo Código do Património Cultural italiano.
O museu já tinha feito um pré-aviso à marca de moda, mas parece que Gaultier não deu ouvidos e, até agora, continua sem dar resposta. O museu viu-se obrigado a entrar com uma ação judicial que exige a remoção das peças de roupa, bem como uma indemnização ao museu.
Se Jean Paul Gaultier cometeu uma ilegalidade? Sim, e certamente perderá dinheiro. Se é uma estratégia de marketing assinalável? É. Se Botticelli está a dar voltas na campa? Não me parece.
Difundir uma arte por meio de outra arte deveria ser punível? Jean Paul Gaultier não pegou num pincel e fez uma réplica da magnífica obra renascentista (provavelmente, nem o conseguia). O designer apenas carimbou a lembrança de uma obra marcante. Trazer Botticelli para a nossa memória é fazer as coisas bem.
Ainda que arte e cultura sejam dois conceitos distintos, acredito que os seus efeitos não vivam sozinhos. A cultura é do mundo e uma obra de arte é do artista para o mundo. Agora, percebem porque falei de apropriação cultural no início deste texto.
Não sei como estão a assistir a este combate, mas eu vejo Jean Paul Gaultier e Botticelli sentados num ringue, de mãos dadas, vestidos com a nova coleção da marca de luxo e – quiçá – a beberem um chá.