Quem chega ao número 17 da Rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa, encontra uma fachada discreta e uma portada que se abre para um mundo com 80 anos de histórias.
Tudo começou em 1944, ano em que o Hotel Britania Art Deco, do grupo Hotéis Heritage Lisboa, abriu portas pela primeira vez e, apesar de muito ter mudado desde então, o trabalho de preservação já pelas mãos dos proprietários que chegaram nos anos 70 permite uma viagem no tempo.
Mal chegamos, basta olhar ao redor no lobby e notar as janelas redondas de outrora, os candeeiros exuberantes com vários braços e as paredes com detalhes em mármore, em especial aquela que resume parte destas oito décadas.
Enquanto decorria esse tempo, o hotel acolheu nos seus quartos e salões de festas figuras ilustres, desde políticos, como o general Humberto Delgado durante a campanha às eleições presidenciais em 1958 ou o Almirante Pinheiro de Azevedo, nas eleições presidenciais em 76, até aos escritores, entre eles Sophia de Mello Breyner e Almada Negreiros, ambos amigos de uma das protagonistas deste hotel, Natália Correia, como conta à VERSA Luís Alves de Sousa, sócio-gerente do Hotel Britania Art Deco.
“Abri o hotel a 28 de janeiro de 1976, portanto acompanhei esta fase toda, mas o hotel já tinha para trás 32 anos de existência e de uma história muito rica com dois protagonistas fundamentais, na nossa opinião: o arquiteto Cassiano Branco, que fez o projeto, e Natália Correia, uma pessoa muito presente nos anos 50”, revela.
Natália Correia era mulher de Alberto Machado, gestor do hotel à época, e fez da unidade a extensão da sua casa, tendo nele encontrado a inspiração para escrever um livro e o espaço ideal para “festas e receber pessoas, personalidades importantes internacionais e nacionais também", momentos que, mesmo não tendo feito parte, Luís Alves de Sousa sabe de cor graças a documentos e relatos de pessoas que fizeram parte desse passado.
Dos tempos que não voltam às histórias que ficam por contar
Quantos não são os hotéis históricos que se viram obrigados a tornarem-se muito mais modernos para sobreviverem aos dias que correm? Esse não é, felizmente, o caso do Hotel Britania Art Deco. Tem passado por várias fases de recuperação, sempre com exigente manobras, e nem na maior transformação, entre 1996 e 1997, perdeu a sua essência.
“Numa primeira fase houve uma remodelação dos 30 quartos que tínhamos na altura e de todos os pisos. Depois, o rés-do-chão, a parte da copa, do bar e do hall”, lembra o sócio-gerente, que recorda um momento insólito da segunda fase.
Decorria o ano 1997 quando começaram as obras de remodelação do bar, com a presença de técnicos da Fundação Ricardo Espírito Santo, que estudavam a melhor forma de recuperar toda a estrutura e as pinturas da época colonial que haviam sido tapas de branco aquando da ocupação do hotel. E eis que a agitação não passou despercebida aos hóspedes mais curiosos.
"Um casal americano que estava cá por uns dias a certa altura espreitou e percebeu o que é que se estava aqui a passar”, começa Luís Alves de Sousa por contar. “Esse casal foi muito curioso, porque pediram-nos para entrar e para ficarem sentados a assistir. Passavam aqui algumas horas do dia, saíam e voltavam, sentavam-se novamente para ver o trabalho. De tão interessados que ficaram, tinham uma viagem programada à Madeira, foram e depois voltaram e estiveram cá quase mais um mês a acompanhar isto tudo”, recorda.
Um sono profundo sobre outros tempos
O Hotel Britania Art Deco tem um total de 33 quartos que seguem a estética Art Déco, com cabeceiras de cama elegantes que reproduzem as de veludo dos anos 40, mobiliário antigo e grandes cadeirões, que harmonizam com o chão de cortiça, hoje em dia já difícil de encontrar.
"Já não se faz cortiça daquela espessura, que tem um centímetro. Agora a cortiça tem dois a três milímetros. Depois de uma pesquisa de vários anos, conseguimos que uma fábrica nos fizesse um trabalho especial e hoje temos cortiça de reserva", diz o sócio-gerente.
O passado faz-se ainda notar nas casas de banho em mármore e torneiras de manipulo rotativo que já quase não se encontram, enquanto de forma discreta os tempos modernos marcam presença na forma de ar condicionados, sistema de carregamento de telemóveis por contacto e televisões – no fundo, tudo a postos para desfrutar do quarto após um cálice de Vinho do Porto numa garrafa requintada que é deixada aos hóspedes.
De todos os quartos, os mais especiais são o número 13, que presta homenagem a Natália Correia, assim como o quarto 24, com referências ao poeta Vinicius de Moraes, que em tempos foi também hóspede do hotel, e o quarto 44 dedicado à artista espanhola Carmen Sevilla, também conhecida como "Noiva de Espanha".
Estas estrelas parecem viver em cada espaço neste hotel, até nos quartos que não chegaram a conhecer. Em 2004, a Suite dos Escritores ocupou o 6.º piso – em tempos uma espécie de casino e até espaço de cinema –, resultado de um projeto do arquiteto Pedro Appleton, do Promontorio, que seguiu o espírito de Cassiano Branco com um twist. O objetivo foi tornar a decoração mais ligeira do que os restantes quartos, para destacar o exterior, já que a suite tem um terraço.
A história mais recente tem 30 anos
Quantas mais históricas cabem nos 80 anos do Hotel Britania Art Deco? É difícil contabilizar, mas algumas das mais recentes são nos contadas ao pequeno-almoço por Graça Costa Teixeira, uma das funcionárias mais antigas da unidade hoteleira.
“Entrei em 1994. Já fiz de tudo desde que entrei aqui, e continuo. Costumo dizer que sou a substituta, porque faço tudo o que houver para fazer”, brinca.
Graça, com raízes lisboetas, sempre trabalhou em hotelaria, incluindo na Suíça, mas foi no Hotel Britania Art Deco que encontrou aquilo que diz ser uma família. “Vi o hotel a crescer. Quando vim para aqui não era nada assim. Isto [referindo-se ao bar] já foi tudo descoberto depois de eu cá estar. Vi tudo a ser renovado, vi o hotel a mudar. Gosto de estar aqui, dos meus patrões, é uma família”, refere.
Contudo, a família não é apenas aquela com quem trabalha no dia a dia, são também os hóspedes que passam e que mesmo após regressarem a casa não esquecem quem os acolheu no Hotel Britania Art Deco.
“Tenho memórias de uma menina e de uma mãe que passaram aqui 15 dias e a menina, na altura com 10 ou 12 anos, ainda hoje nos escreve. Mesmo nos clientes, há aqueles que são como família. Tenho também um casal de franceses, nós escrevemos cartas em alturas festivas ou simplesmente para dizer como vai a nossa vida. Eles continuam a vir cá uma vez por ano, mas há sempre esta troca de correspondência”, lembra Graça Costa Teixeira.
Na base destas relações está o cuidado em cada momento da estadia, desde as conversas ao pequeno-almoço, como quando os clientes mais curiosos querem saber mais e mais sobre o passado do hotel ou simplesmente de que é feita a marmelada, até ao chá das 17h às 19h, acompanhado de pastéis de nata e a amabilidade de quem os serve.
Uma vez alimentada a alma, em particular, para os mais madrugadores, com um pequeno-almoço completo, que inclui ovos, iogurte, croissants quentes, pães e fruta variada, cereais e frutos secos, sumos e café ou chá, é altura de alimentar o conhecimento. E gratuitamente.
Isto porque o hotel oferece entrada gratuita no Museu Nacional de Arte Antiga e também no Museu Nacional de Arte Contemporânea a que fica alojado no hotel.
Quando a preços, uma noite custa a partir de €125.