Em três (quase quatro) anos de vida, João Sá já deu inúmeras voltas ao seu restaurante na Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa. Se nos primeiros tempos era possível pedir à carta, a oferta do Sála cinge-se agora a dois menus de degustação – um composto por três momentos, em que o cliente escolhe uma entrada, um prato e uma sobremesa; e outro de seis momentos, sem contar com sobremesas e snacks. Mas as novidades não se ficam por aí. A decoração está diferente e nem as mesas, as cadeiras e os pratos escaparam à transformação. E se a pandemia se revelou um período crítico para a restauração, esses constrangimentos também permitiram ao chef de 36 anos limar arestas e definir prioridades na sua cozinha.
“Cada vez mais procuro ser feliz a cozinhar”, diz João Sá, reconhecendo que tal afirmação poderá parecer corriqueira aos leitores. “Não só como fazedor mas como consumidor, irrita-me ver restaurantes sem miolo, sem conteúdo histórico”, argumenta em seguida. Estando localizado numa zona da cidade por onde, em tempos idos, se movimentou tanto “produto de fora” e que é agora símbolo da transição entre a tradição e a modernidade que aflige Lisboa, “só faria sentido ter no Sála pratos que fizessem essa ligação”.
Os nomes dos novos menus – Horizonte à Vista e À Procura de Novas Texturas, respetivamente –, encontrou-os nas paredes. E não exageramos ao afirmá-lo. “Esses nomes vêm mesmo dos quadros que estão por cima da mesa”, brinca. E não é que, sem saber, esses nomes viriam a assentar que nem uma luva ao que João Sá quer mostrar no seu restaurante? “O menu de seis pratos [Horizonte à Vista] não tem fronteiras. Tem muitas influências de África, do Brasil, da Índia, enquanto que o outro [À procura de Novas Texturas] é, talvez, mais conservador mas anda à procura de algo e os pratos mudam mais regularmente”, resume.
Num restaurante que assume uma cozinha viajante, bebendo da gastronomia dos países por onde a diáspora portuguesa foi passando e onde a cultura gastronómica portuguesa perdurou, o que faria então sentido mostrar neste novo Sála? “Portugal de norte a sul”, responde prontamente. “Ingredientes de norte a sul, descontextualizados numa cozinha tradicional que explica o porquê de o usar e a razão para fazer de determinada forma”, aponta.
Exemplo desse cruzamento de influências é o primeiro prato que nos chega à mesa, uma santola com caril goês e geleia de maçã verde. A ideia por trás, diz-nos João Sá, é a de um caril goês, ao Balchão, “um prato típico de Goa com caranguejo”. Para o chef, o importante é que “o cliente perceba que está em Portugal, apesar de nunca ter provado algo parecido”. No menu mais longo, que tem o valor €75 ou de €120, com a harmonização de cinco vinhos, o cuscos transmontano com berbigão fumado traz-nos, por sua vez, de volta a Portugal – mais concretamente ao norte do país. O bago utilizado é maior, sendo trabalhado como se de um bago de risotto se tratasse, descreve. “Junta-se o alho e os coentros e vamos para o sul.”
Se há coisa com a qual João Sá é desprendido é a comida. Olhando para trás, o chef recorda os quatro anos passados em Sintra, no G-Spot, entre 2008 e 2012, nos quais nunca repetiu um prato. “Fazíamos menus que rodavam todas as semanas”, recorda. “Aqui no Sála, nunca fiz nenhum desses pratos. Gosto de ler, pesquisar e quero que o Sála seja um restaurante que tem um diálogo com os clientes e que não passa necessariamente por mim”, refere.
Num restaurante em que a oferta carnívora é praticamente inexistente (encontra-se apenas no menu mais curto um lombo de novilho, batata nova e molho de chanterelles e espargos acompanhados por papada de porco crocante), João Sá quis valorizar um peixe “mal-amado”, a pescada, e juntou-lhe uma caldeirada de enguia fumada e açafrão. O curioso, aponta, “é que o açafrão não faz parte da nossa cultura gastronómica, mas a verdade, por sua vez, é que em Aveiro apareceu uma caldeirada de enguias feita com esta especiaria, que não leva pimentos nem tomate”.
A finalizar os principais, o arroz de polvo e algas com gel de citrinos, um dos pratos mais icónicos do Sála, mantém-se há já quase ano e meio. Aqui, a ideia partiu da Ria de Olhão e das ovas de polvo seco que integram o prato. “Como não carece de muita sazonalidade, é fácil mantê-lo”, justifica.
E, se nesta altura o menu começa e acaba fresco, o mesmo não acontecerá no inverno. “Este menu demora cerca de hora e meia, duas no máximo. Tentámos reduzir os hidratos e queremos que seja equilibrado”, ressalta. Prova dessa preocupação é o tomate hortelã e poejo servido antes da sobremesa, uma mousse de tomate assado com creme de hortelã e vinagre “que está na fronteira entre uma sobremesa e uma salada”.
Ao fim de três anos e meio de portas abertas, o Sála foi “cada vez mais refletindo quem é a pessoa à sua frente”, acredita João Sá. “Quando vou comer, gosto de observar quem é a pessoa que cozinha e cada vez mais gosto que o Sála seja isso – um restaurante que tem pessoas a falar, música, ambiente, bom serviço e boa comida, de forma descontraída. Não sei ser de outra maneira.”