As paredes revestidas com painéis trabalhados em madeira, os candeeiros pendentes do teto e a alcatifa encarnada transportam-nos para outra época. Não seria difícil imaginarmo-nos numa Lisboa de antigamente, distante da gentrificação que a assola, e em que parte do circuito noturno da cidade passava pelas tertúlias em cafés clássicos que se arrastavam até de madrugada, à boleia de álcool, cigarros e de bifes com três dedos de altura, mergulhados num molho aveludado marrom, acompanhados por batatas fritas. No Cais do Sodré, junto ao Mercado da Ribeira, numa das zonas que mais se transformou, Luís Gaspar abriu em setembro o Brilhante, um restaurante que pretende resgatar do esquecimento a tradição desses espaços clássicos que quase desapareceram em Lisboa.
“Quisemos recuperar o registo dos restaurantes dos anos 1970 e 1980 em Lisboa, mais boémios e mais noturnos. Temos clássicos da cozinha portuguesa e clássicos da cozinha francesa, inspirados em Paul Bocuse e Joel Robuchon”, explica Luís Gaspar, chef que detém a escassos metros a Sala de Corte, outro restaurante do grupo Plateform, que se tornou uma referência para entusiastas de carnes maturadas de qualidade.
Esse regresso ao passado, claro, depende, em boa medida, do ambiente. A imponente porta fechada, que obriga a tocar à campainha antes de entrar, é um dos elementos que contribui para a singularidade deste restaurante. No seu interior, a caminho das mesas ou do balcão, o bar à entrada reluz, podendo servir-nos dele para beber um copo, sem necessidade de seguir posteriormente para uma refeição. Mas o verdadeiro protagonista e aquele que nos faz recuar no tempo é o icónico bife à Marrare, criado no século XIX pelo napolitano António Marrare que, depois de trabalhar como copeiro para a burguesia lisboeta, abriu quatro cafés – um deles na Rua dos Remolares ali bem perto – que se tornaram afamados na cidade.
“O bife à Marrare é um clássico lisboeta e foi-se perdendo. Existem dois ou três restaurantes que na realidade o fazem, mas achámos que tínhamos de ter esta responsabilidade de o trazer de volta”, diz Luís Gaspar, que abriu em julho, no Príncipe Real, outro restaurante – o Pica Pau – este dedicado à gastronomia tradicional portuguesa e em jeito de homenagem a Maria de Lourdes Modesto. No Brilhante, portanto, a interpretação da receita deste bife histórico é outra: o corte do bife originalmente era feito apenas com pojadouro, sendo o molho confecionado com alho, manteiga e natas. Agora, Gaspar opta pelos cortes da vazia e do lombo, da raça Minhota Galega. “Eu acho o molho bom, mas pouco gastronómico. Damos-lhe mais técnica, fazemos um caldo de carne e juntamos vinho Madeira, mais seco, que era muito usado na cozinha francesa”, explica, dando como exemplo o Tornedó Rossini que “poucos sabem, mas levava um jus de vinho Madeira”.
Fruto desta reinterpretação, o bife à Marrare assume outro nome: bife à Brilhante. Um dos seus segredos, porém, reside no molho. A base é a do Marrare, mas depois leva tomilho, caldo de carne e, claro, vinho Madeira. E porque não usar vinho do Porto? “O Porto quando reduz ganha sempre outras notas adocicadas. O Madeira é mais seco e, ao reduzir, ganha notas mais amadeiradas, de frutos secos.” Para acompanhar o bife, que se for da vazia fica por €22 ou se for do lombo já sobe para €28, as batatas fritas são a escolha mais evidente, mas há um rol de opções por explorar: seja a Tartiflette au Reblochon, o esparregado de espinafres com Parmigiano Reggiano, o puré de batata trufado ou os corações de alface com vinagrete de mostarda e mel ou Endívias com Roquefort e nozes. Há igualmente a possibilidade de acoplar extras ao bife: falamos de um simples ovo estrelado, ou de um escalope de foie gras (€10) ou de uma tranche de lavagante (€25).
O revisitar de clássicos da cozinha francesa é outra das apostas de Luís Gaspar, fruto talvez de ter trabalhado com o chef francês Aimée Barroyer no Pestana Palace no seu início de carreira. “A cozinha francesa deixou de ser moda, mas fez parte da história da restauração lisboeta. Se formos olhar para os [restaurantes] clássicos, todos têm referências à cozinha francesa”, justifica. O foie gras Torchon (€18) ou o salmão Gravlax (€14), “pratos que se aprendem na escola de cozinha” foram assim escolhas óbvias para incluir na carta do Brilhante. O bife tártaro (€24), um clássico internacional da cozinha francesa é outro exemplo. Mas também há espaço para a baguette francesa (€3,50) servida no couvert com uma manteiga fumada a frio e uma rilette de pato, uma técnica de conservação da coxa do pato cozinhada com gordura do mesmo, desfiada e que é misturada de novo com especiarias.
Quem quiser fugir ao bife, o linguado Meunière (€38), o arroz de lavagante (€45) e a Beringela alla Parmigiana (€18) são outras das opções a ter em conta. No fundo, sublinha Luís Gaspar, o Brilhante “traz de volta clássicos da cozinha francesa e lisboeta que outros fazem”, mas surge da vontade de ter um espaço e oportunidade para os apresentar com a sua “identidade enquanto cozinheiro”.
Mas, numa altura em que as escolhas alimentares dos consumidores e dos protagonistas da indústria são altamente escrutinadas, não será arriscado abrir um restaurante que revisita a tradição de um bife icónico da cidade? Luís Gaspar considera que não e argumenta que cada vez mais é necessário apostar em restaurantes de destino. “Os restaurantes têm de ser conceptuais e de se afirmar como restaurantes de destino. A Sala de Corte é um exemplo disso. Aqui as pessoas estão a consumir carne de vaca – é verdade –, mas quem a quer consumir sabe onde ir. As pessoas consomem menos, mas, quando querem consumir, sabem onde ir, devido à qualidade do produto, do serviço e por ser um restaurante especializado.”
A par da influência da cozinha francesa, a aposta no serviço de bar é outra das prioridades. Com mais de 50 referências de whiskey, o Old Fashioned (€10) é o cocktail de assinatura, mas há também uma carta repleta de clássicos assinada por Fernão Gonçalves, chef executivo de bar do grupo Plateform, para conhecer. As sobremesas, como o crème Brulée, a tarte Tatin ou o suflée de pistachio e chocolate, estão a cargo de Clayton Ferreira, chef pasteleiro do grupo. Os vinhos, por sua vez, são da responsabilidade de Gonçalo Patraquim, wine director do grupo.
Apesar de o restaurante ter “um ambiente mais excêntrico e luxuoso”, Luís Gaspar não quer que o Brilhante pareça proibitivo para a maioria da população nacional que habita a cidade. “Os preços têm de estar ajustados à qualidade do produto” e, embora possa ser considerado um restaurante com um preço médio elevado, o chef garante que “há mais portugueses do que estrangeiros” a visitarem o restaurante que fica aberto todos os dias até à uma da manhã.
Rua da Moeda, 1, Lisboa. 210 547 981. Segunda a sexta das 12h às 16h e das 19h às 01h e sábado e domingo das 12h às 01h. Preço médio: €45