Primeiro, deixem-me relembrar que estamos numa ilha que recebeu em 2004 a classificação como Património da Humanidade pela UNESCO, pelas suas vinhas e lajidos, magníficas representações da arquitetura tradicional ligada à cultura da vinha, do desenho da paisagem e dos seus elementos naturais. Esta é a segunda maior ilha do arquipélago. É também a mais jovem com cerca de 700.000 anos (sendo Santa Maria a mais velha com 6M). E, claro, a sua montanha, a mais alta de Portugal, do Pico, o seu elemento icónico primordial com os seus 2351m de altitude.
Mas por que é isto relevante?
Honrar a paisagem
Ser património da UNESCO é mais do que um título. Requer cumprimento da honra e cuidado pelo seu legado. As zonas classificadas de tipo A não podem ter intervenção humana. Quanto às de tipo B, podem ter alguma intervenção desde que seja mínima e de forma a não impactar na paisagem.
É o que sucede com a implantação do edifício da Azores Wine Company, que alberga adega, alojamento e um restaurante que irá marcar as escolhas e memórias dos que visitam o arquipélago, obrigando a escolhas difíceis de qual ilha visitar e onde, admito, muitos farão a troca para visitar o Pico mais cedo, muito por culpa desta experiência.
A arquitetura do edifício esteve a cargo de duas duplas, a SAMI Arquitectos de Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira (ambos com experiência de terem vivido na ilha) e o atelier britânico DRHR de Daniel Rosbottom e David Howarth. Trata-se de um edifício quadrado que alberga adega, salas de prova, alojamentos T1 e T2, um jardim interior a céu aberto com pira para as noites mais frias e, claro, restaurante com vista para as vinhas e currais, o mar com a rebentação viva e o Pico.
É, aliás, da varanda ampla do restaurante que nos apercebemos de alguns rasgos dos arquitetos a cumprir os requisitos da Unesco. Vendo a linha do telhado, percebemos que este acompanha de forma exímia a mesma exata inclinação da encosta, conseguindo ainda um declive que permite à água das chuvas ser encaminhada pela gravidade até ser recolhida e guardada para os dias mais secos. Magnífico.
Mas vamos aos pratos que se faz tarde
A sala combina o betão com a madeira quente e escura e algumas cadeiras confortáveis de design sueco prontas a receber corpos exaustos da subida pelas encostas; quem sabe um chá quente ou uma garrafa da produção da casa (aconselho o Verdelho Original para conversas amenas ou para mentes mais corajosas o Terrantez).
Somos recebidos pela simpatia cativante da Inês Vasconcelos, sommelier que nos irá guiar pelo pairing de vinhos. Junta-se o Chef José Diogo Costa, que faz par na vida privada e profissional com a Inês, e mal começamos a experiência já percebemos por que é que o restaurante recomenda o menu de degustação com prova de vinhos. Tudo encaixa.
As louças são locais, encontradas pelo Chef nas deambulações pela ilha à procura de tradições e ideias e, no acaso, um casal de belgas reformado na ilha a criar belas peças que aqui vão iluminar a refeição. A escolha dos copos é de excelência. Nada ao acaso. O culminar é uma mesa longa e ovalada de possante espessura e com uma pedra de lava imensa a romper o centro e a espreitar para nos lembrar onde estamos.
Pé no mar
Começamos com um copo de Verdelho – O Original edição 3 ilhas de 2017 (vinhas do Pico, Graciosa e São Miguel). Ano chuvoso que nos traz um vinho mais terroso, mineral, cítrico e salino com um final de maçã assada no nariz. Muito bom.
Para abrir as hostes, uma lapa flamejada em manteiga com dois tipos de algas (uma frita e outra fresca) e rabanete. Aroma ao oceano mesmo em frente, sereno, sem a rebentação que víamos a inspirar histórias e a pintar a conversa, com a lapa a contornar muito bem na confeção a experiência por vezes tão má de borracha que se encontra nalguns locais, aqui macia e delicada. Começa bem. Não surpreende, mas cumpre com excelência e satisfação redobrada.
Vem o pão.
Surpresa.
Chega-nos em sacos da Fajã dos Vimes, da ilha de S.Jorge, feitos com lá de ovelha. E, na tábua, uma manteiga clarificada e caramelizada com flor de sal para nos abrir o palato. Incrível! Não é preciso mais nada para fazer uma pessoa feliz. “A qualquer hora do dia”, como bem lembra o Chef José Diogo Costa.
Mergulho
Passamos para as águas mornas da ilha (depende de qual zona, umas mais do que outras) e entramos com o corpo inteiro. A par de um copo do incrível Vinha Centenária (sublinhe-se, incrível) servem-nos um Tártaro de Encharéu polvilhado com ovas inspiradas na Tailândia, espuma de limão tangerino e pimenta da terra desidratada. A acidez da espuma equilibra o tártaro numa experiência que pede mais. Mas já lá vem.
Mergulhar mais fundo
Volta-se a encher o copo. Desta vez, com outro branco, o Canada do Monte 2019. Arinto dos Açores maioritariamente. Caramelo, mel, pão torrado. Untuosidade e persistência na boca. Um vinho de toque mais queimado e a pedir pratos mais robustos e conversas sérias. Duas parcelas com uma canada a separar (canada é uma estrada que passa no meio das duas parcelas, daí o nome).
Venha o prato.
Mantemos o peixe.
E partilho que este foi o meu favorito (mas já falei no pão e manteiga caramelizada?).
Lírio dos açores acompanhado de nabo frito, molho beurre blanc com um toque do mesmo vinho, Canada do Monte, e manteiga fumada. Cebola delicadamente presente. Funcho com um toque anizado fresco e, para minimizar o desperdício alimentar, a folha do nabo foi frita e juntou-se ao prato. O molho divinal é de tal forma que todos pedimos para repetir. E alguém seguiu as indicações e barrou o pão no prato. Afinal, estamos entre amigos, tal é o à-vontade na sala entre o staff e os visitantes portugueses, mas também estrangeiros, maioritariamente espanhóis, franceses e alemães.
Voltar à terra
A Inês traz-nos um Tinto Erupção e resolvo pedir-lhe uma experiência, trazendo o surpreendente Tinto Vulcânico. A este mais leve temos então o Erupção com 100% Syrah, só mesmo disponível no restaurante. Uvas apenas esmagadas ligeiramente e com 50% de estágio em carvalho francês e os restantes 50% em inox.
A experiência ganha níveis de ansiedade com a presença de facas da ilha Gran Canária, por sugestão de uma funcionária. Facas esbeltas e de aparência eficaz, com cabo elaborado a partir dos chifres de ovelhas e cabras dos pastores. O seu traço remonta ao século passado, elaborado em prol das necessidades dos pastores para o dia a dia.
Surge então a carne da vazia da ilha do Pico. Pinta-se o prato com um molho aprimorado durante 5 dias, beldroegas, cogumelos e caldo de peixe, kale e farinha de milho torrada. Boa forma de terminar as proteínas. E, de facto, o Syrah acompanhou melhor. Tinha toda a razão, Inês. Quem sabe, sabe.
Despedidas
Para deixar o 2.º ato, temos uma tosta de queijo de São Jorge com 12 meses de cura, das Chagas. Pontuada com flocos de abóbora defumada de inspiração no NOMA, nastúrcio e katsuobushi; uma ideia para entrada que se transformou num fecho de refeição com intensidade. Divinal. Por mim, fechava aqui, sem importar os pecados da gula açucarados. Mas dada a surpreendente experiência até esta hora, não resisto e sujeito-me ao pecado.
Regresso a casa
Terminamos com um vinho licoroso cuja história da sua existência remonta aos séc. XVII / XVIII. Percorreu mundo. Terá sido brinde regular dos Czares russos. É um vinho não fortificado, ao jeito de um Colheita Tardia, aqui no restaurante aguardentado e de base de vinhas velhas. Tonalidade dourada escura, casta Verdelho predominante.
Estranha-se no início, mas revela-se no final. Bom, mas, ainda assim, prefiro um bom Porto (ok, percebo que estou na ilha e na adega, mas perdoem-me a confissão e predileção).
Chega um pudim de massa sovada com sorbet de laranja local, compota de contera (jarroca), planta invasiva (chupa o néctar de cada flor) que surpreende, pois os locais acham que nada seria possível fazer da Contera. Debaixo do sorbet, está o tartarato, cristais do ácido tartárico, de Arinto, feito com base nas borras e a -40° (ficando quase como peta-zetas!). Toque de midas o polvilho verde de limão tangerina e ainda laranja desidratada.
Dá para repetir, afinal?
Veredicto:
Seja pelo arquitetura, pelos vinhos ou pela comida, razões não faltam para vir ao Restaurante Pico (e, se quiseres, aluga um quarto para poderes acordar a ver as vinhas lançadas sobre o mar na manhã seguinte, a ouvir cantar os caranguejos – não posso explicar a expressão, terás de perguntar à equipa do restaurante Pico).
Acrescentaria uma quarta razão às três enumeradas, a simpatia do staff, quer nas explicações do espaço e da ilha, quer na sugestão dos vinhos e na revelação dos pratos. Pode-se optar por menu ao balcão, a ver a equipa a preparar os pratos à nossa frente entre dois dedos de conversa, ou por um menu de degustação com pairing de vinhos junto dos janelões.
A reserva é obrigatória.
Dica:
Vem mais cedo e aproveita para parar no povoado junto das piscinas naturais do Lajido e da Casa dos Vulcões, zona de antigas Adegas, hoje residência sazonal de muita gente local e com a sua estrada vermelha típica. Circula pelo povoado, vê as rochas a entrar no mar e aproveita para meter conversa com alguém que por ali passe. Depois, são 5 minutos de carro até à Azores Wine Company e já levas conversas e paisagens adicionais maravilhosas para acompanhar a noite.
Veredicto Versa: “Memorável”
Restaurante Pico - Azores Wine Company
Reservas em: https://www.antoniomacanita.com/pt/vinhos/azores-wine-company/restaurante-pico