A Inteligência Artificial (IA) ajuda-nos a explorar as mais diversas áreas: as viagens, os vinhos e também a saúde. Tratando-se de uma área mais sensível, recorrer à IA exige maior conhecimento.
Existe um lado benéfico na IA, que facilita não só o trabalho da comunidade médica e cientifica, como, por exemplo, do próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS) na forma como se organiza e atende às necessidades de saúde da população portuguesa. Por outro lado, há riscos na IA e ninguém os esconde.
O lado bom e mau é analisado por Rui Nunes, Professor Catedrático de Bioética da Faculdade de Medicina do Porto e presidente e fundador da Associação Portuguesa de Bioética, que em entrevista à VERSA responde a várias questões em torno do uso da IA na saúde.
Há quantos anos a IA foi introduzida na área da saúde?
Apesar de a expressão “inteligência artificial” ter surgido nos anos 50 do século passado, só a partir dos anos 80 é que os sistemas de IA foram utilizados na medicina. Nomeadamente para processar dados com maior rapidez e eficácia, para contribuir para uma cirurgia mais precisa e segura, bem como para uma utilização mais compreensiva do registo de saúde eletrónico. Hoje é de utilização corrente nos diferentes domínios da saúde.
Muitas vezes pensamos em IA como algo extra futurista, por exemplo um robô a fazer o trabalho do médico. Que outras formas de IA existem na saúde?
A IA vai alterar profundamente a saúde a todos os níveis. No ensino dos profissionais de saúde, na investigação científica, na prática da medicina e na gestão e administração do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Será de enorme utilidade na gestão diária das consultas de médicos, psicólogos, dentistas e demais profissionais. Será um importante auxílio no diagnóstico clínico, ou na cirurgia, por exemplo na urologia, ou em neurocirurgia. Se associada à telemedicina, a IA poderá contribuir para facilitar o acesso à saúde agilizando procedimentos e facilitando a consulta médica à distância.
De que forma a IA chega à comunidade científica e médica e, por outro lado, de que forma chega aos pacientes?
A comunidade científica tem contacto com IA por diferentes meios. Por um lado, pela forma tradicional de comunicar em ciência e na saúde, ou seja, através de formação específica e de revistas especializadas na matéria. Mas, hoje, a literacia científica (incluindo em IA) através das redes sociais ocupa já um importante espaço na vida profissional de médicos e cientistas, pelo que a grande dificuldade é combater a desinformação que surge por vezes nos media sociais. Daí a importância de um jornalismo científico isento, de qualidade, e solidamente alicerçado na mais recente evidência científica, para uma adequada informação dos pacientes que queiram recorrer a estas tecnologias. A televisão, a rádio, a imprensa escrita e a digital têm, por isso, um papel fundamental na literacia em IA da população.
Quais os benefícios da IA na saúde?
A IA pode trazer inúmeros benefícios à saúde, concretamente na medicina e na investigação científica. Na investigação a IA generativa permite acelerar processos e agilizar resultados. Na prática clínica a IA e a IA generativa (tal como o ChatGPT) são já hoje um importante auxílio no diagnóstico médico e mesmo no tratamento e prevenção de doenças em todas as áreas da medicina. Também, a psicologia, a enfermagem, ou a nutrição são já hoje apoiadas pelas modernas tecnologias de IA. Na gestão da saúde e na reorganização do SNS a IA é uma ferramenta indispensável para a modernização do nosso sistema de saúde. A inteligência artificial demonstrou-se, também, uma ferramenta essencial no combate à COVID-19, sendo previsível a sua importância decisiva no combate a futuras emergências de saúde pública, tal como as pandemias.
Perante uma doença, pode a IA sugerir novas soluções de tratamento nunca inventadas ou desenvolvidas?
A IA está a ser utlizada com enorme sucesso no diagnóstico médico, através de complexos algoritmos que processam a informação e os dados de um modo extraordinariamente efetivo, por exemplo na radiologia ou dermatologia. Também no diagnóstico cirúrgico, a IA tem sido utilizada para guiar os médicos, por exemplo na biópsia do cancro da mama. A inteligência artificial está a demonstrar-se particularmente eficaz na criação automática do registo de saúde eletrónico, libertando o médico para um atendimento mais humanizado com os doentes.
No plano da investigação científica a IA alavanca todas as áreas da medicina e da saúde sendo revolucionária nas ciências básicas e sua translação para a prática clínica. De igual modo, em cuidados paliativos a IA tem permitido ajustar as doses de medicamentos às necessidades e preferências dos doentes, o que denota a transversalidade da IA na saúde. Tem-se demonstrado também revolucionária na descoberta de novas moléculas terapêuticas, como vacinas, medicamentos, etc., ou na invenção de novos e ambiciosos dispositivos médicos.
Quais os riscos do uso da IA na saúde?
A IA tem riscos que decorrem das suas extraordinárias capacidades. Por um lado, a IA generativa alimenta-se de informação já existente nas bases de dados que fluem livremente na Internet. O que significa que pode existir um viés nos resultados obtidos por IA se os dados primários não forem totalmente válidos. Fenómeno agravado pela falta de explicabilidade da IA, ou seja, a incapacidade de o ser humano entender o modo como a IA processa os algoritmos e alcança determinadas conclusões. Por outro lado, existe a possibilidade de a IA aceder a dados pessoais sensíveis, como são os dados de saúde. Pelo que a investigação em IA deve garantir sempre uma adequada supervisão humana para proteger valores fundamentais, como a autonomia da pessoa e a sua privacidade.
Existe o risco de pacientes substituírem a consulta médica pelo ChatGPT, recorrendo às suas possíveis sugestões de diagnóstico?
É um risco real, dado que existe uma tendência geral da sociedade para confiar nas novas tecnologias. Por outro lado, a falta de acessibilidade ao sistema de saúde pode facilitar também o acesso recorrente a sistemas de IA na saúde. Compete aos médicos e demais profissionais aprofundarem a dimensão humana da relação com o doente de modo a que não exista, em qualquer circunstância, uma substituição do médico por um “médico digital”.
Em contexto hospitalar, existe o risco de a IA baralhar os diagnósticos dos pacientes?
A tecnologia digital será sempre falível. Porém, a questão a formular é se em algumas áreas da medicina, nomeadamente no diagnóstico diferencial de doenças, a IA é mais ou menos fiável do que o médico, que por vezes também falha apesar da sua enorme diferenciação técnica. Por outro lado, a IA evidencia ocasionalmente “alucinações” que podem induzir a um diagnóstico errado, mas estima-se que o grau de acuidade seja progressivamente melhorado, sobretudo com o desenvolvimento da superinteligência artificial. Compete à medicina encontrar meios para verificar se a IA cumpre com todos os requisitos de fiabilidade clínica e assegurar o respeito pelas regras da Medicina Baseada na Evidência como standard da melhor prática médica.
Para um progresso positivo da IA na medicina, o que é preciso garantir?
É preciso garantir, em primeiro lugar, níveis adequados de literacia digital da população, para que não se gerem falsas expetativas com a sua utilização. Também os médicos e demais profissionais de saúde devem dispor de elevados conhecimentos técnicos para uma utilização regular da IA sem ficarem dependentes das novas tecnologias digitais. Por outro lado, deve existir um quadro regulamentar que, sem proibições fúteis e desnecessárias, promova uma utilização racional da IA para que esta seja sempre considerada de confiança. A recente aprovação na União Europeia do AI Act (Regulamento de Inteligência Artificial) é uma garantia de que a IA será sempre utilizada com integridade e profissionalismo.