Viajar pelo Japão é trocar de frequência mental. Três semanas bastaram-me para perceber que o ruído lá tem outra gramática: Tóquio, onde o caos parece coreografado; Quioto, onde o passado anda descalço; Osaka, onde o riso é alto, mas nunca inimigo; e Okinawa, onde o mar parece ter aprendido a meditar. Tudo funciona com uma serenidade quase poética: comboios que chegam à hora certa, ruas sem lixo, gestos de altruísmo que não se cobram.
Não fui ao Japão à procura de espiritualidade — mas há lições que só se aprendem longe do nosso barulho. Lá, o civismo é uma forma de respeito silencioso. E o silêncio, quando nasce do cuidado, tem o som mais elegante de todos.
Há uma beleza quase perturbadora nessa harmonia: ninguém precisa de ser lembrado para fazer o óbvio. A cortesia é instintiva, a delicadeza não se exibe. A certa altura, dei por mim a falar mais baixo, a mover-me com mais atenção, a perceber que o espaço é partilhado — não conquistado. O Japão não me mostrou um país: ensinou-me um código.
Regressar a Portugal depois disso é acordar de um spa espiritual para um concerto de buzinas. Voltamos ao trânsito em estéreo, às filas que se dissolvem em esperteza, à insatisfação por nada e quase tudo. Voltamos a um país lindo, vibrante — mas exausto. Viver aqui é resistência pura: rendas que não perdoam, salários que não chegam, uma sociedade em modo sobrevivência. E quando o corpo cede, o civismo é o primeiro a ir — nem sempre por maldade, mas tantas vezes por fadiga.
Somos emocionais, teatrais, solidários, encantadores… até perdermos a paciência. E temos vindo a confundir franqueza com falta de filtro. Dizer o que se sente é necessário e válido — quando não é apenas disputa disfarçada de coragem.
Claro que é fácil romantizar o Japão — esquecer que sob a serenidade há solidão e uma pressão constante em corresponder. Mas é aí que mora a nuance: civismo não é repressão. É autocontrolo com propósito. É saber onde acaba o nosso ruído e começa o espaço do outro. O problema português não é falar demais — mas começa por não ouvir ninguém.
Portugal está a mudar: mais vozes, mais rostos, mais sotaques. Mas quando o país se sente à beira do colapso, o “outro” torna-se saco de pancada. A empatia evapora-se. E esquecemo-nos de que todos viemos de algum lugar, e que a dignidade não tem fronteira nem passaporte. As guerras que assistimos e os governos que já não acreditamos azedam-nos a voz. Mas talvez o verdadeiro protesto esteja no gesto mínimo: escolher ser gentil quando menos esperam. Não é poesia — é sobrevivência emocional. E sim, infelizmente, hoje é controverso.
Falamos tanto de luxo — de imóveis, de marcas, de retiros — e esquecemo-nos do luxo emocional. Se Lennon e Yoko reescrevessem o conceito, talvez dissessem algo assim: Luxo é atravessar uma passadeira sem ter de correr pela vida; Luxo é entrar num café e ouvir mais conversas do que gritos; Luxo é poder respirar sem sentir que o mundo te quer ultrapassar; Luxo é existir sem precisar de pedir respeito.
O civismo é a skincare da alma: discreto, paciente, mas transformador. Um gesto que não se fotografa — sente-se. E talvez seja isso que Portugal precise: menos urgência em opinar, mais atenção ao que está à nossa frente.
O nosso desrespeito não é (por vezes) falha moral — é burnout coletivo. E talvez o primeiro passo para curar o país seja este: olhar o outro e oferecer silêncio. Porque em tempos de ruído, o silêncio é o ato mais radical de todos. E o respeito — esse — continua a ser o verdadeiro luxo.
