Os imponentes silos que se avistam ao longe não deixam antever que um antigo complexo industrial de cimentos no porto da Corunha, na Galiza, esconda uma exposição de um dos maiores nomes mundiais da fotografia de moda. Só depois de cruzarmos os portões de acesso ao Muelle de Batería, uma zona portuária desativada da cidade, conseguimos vislumbrar de perto, e em preto sobre branco, as letras serifadas que, de onde estamos, nos parecem garrafais. O nome “Helmut Newton” afigura-se legível.
Estamos num dos locais pertencentes à Fundação Marta Ortega Pérez (MOP), organismo cultural e social criado em 2022 por Marta Ortega Pérez, a herdeira e presidente do império Inditex (dona da Zara, entre outras marcas) com o propósito de dinamizar três das suas paixões: a moda, a fotografia e a Corunha. O caminho começou a ser traçado um ano antes, quando este mesmo complexo industrial, reabilitado pelo atelier Elsa Urquijo Arquitectos, recebeu, em 2021, a mostra Peter Lindbergh: Untold Stories, que foi visitada por mais de 100 mil pessoas. Seguiu-se outra exposição, desta feita direcionando o holofote para outro dos grandes vultos da fotografia de moda, Steven Maisel (Steven Maisel 1993, A Year in Photographs), em 2022, visitada ainda por mais pessoas.
Inaugurada em dezembro de 2023 e patente até 1 de maio deste ano, Helmut Newton – Fact & Fiction é uma viagem ao universo sensual e erotizado do fotógrafo alemão que se naturalizou australiano, através da exibição de mais de 150 fotografias originais, cedidas pela Helmut Newton Foundation, e de uma série de vídeos que mostram o fotógrafo no seu ambiente de trabalho, mas também em diferentes facetas da sua vida privada, ou de objetos como câmaras e adereços que usava nas suas produções fotográficas minimalistas em que dependia apenas de luz natural.
Através da seleção de imagens de Philippe Garner, Matthias Harder e Tim Jeffer, deparamo-nos com os seus famosos grandes nus, os retratos a personalidades conhecidas como a modelo Naomi Campbell, Yves Saint Laurent, David Bowie ou Margaret Tachter, mas também algumas imagens nunca exibidas publicamente que mostram paisagens ou objetos registados como se se tratassem de naturezas mortas.
Uma das imagens que retém durante mais tempo o grupo de jornalistas portugueses que visita a exposição na companhia de Fernando, um dos especialistas da Fundação MOP sobre este prolífico criador, mostra quatro mulheres à mesa, apenas iluminadas por dois candeeiros pendentes. Diante delas têm um banquete com pratos e copos repletos. As roupas não existem e revelam os seus corpos enquanto um garçom vestido enche o copo de uma delas. “Vemos várias mulheres numa ceia, mas quem pagou por esta fotografia?”, questiona Fernando. Estamos em Itália, no ano de 1989. “Uma marca de joias”, alguém responde, uma vez que os colares que as protagonistas desta imagem envergam é o único adereço que têm junto à pele. A resposta de Fernando não poderia ser mais distante do que havíamos imaginado: “Uma adega italiana convidou 11 fotógrafos para editar um livro sobre vinho. O que fizeram os outros dez fotógrafos? Fotos das vinhas, dos enólogos”, enumera Fernando. Helmut Newton, por sua vez, explica-nos, decidiu ousar com um registo que lhe passou a ser característico.
Helmut Newton – Fact & Fiction oferece esta visão interligada sobre a carreira de mais de seis décadas de um dos principais fotógrafos do mundo que criava imagens com base nas suas próprias fantasias, como recorda Philippe Garner num prefácio do catálogo da exposição (disponível para venda na loja da Fundação MOP). Do início dos anos 1960, quando se muda com a mulher, June Newton, para Paris depois de conseguir o primeiro contrato com a Vogue francesa, aos primeiros anos da década de 2000, já perto da sua morte, vamos assistindo à evolução da sua fotografia, mas também do mundo e da moda.
Prova disso é a intrigante imagem datada de 1977, registada na Toscana, em que vemos uma modelo de costas com um vestido transparente de Karl Lagerfeld, de botas de salto alto, a entrar num automóvel estacionado num descampado, ou a fotografia feita para a Vogue francesa, em 1970, com criações de Pierre Balmain e Louis Féraud, em Paris, que retrata duas modelos em passo acelerado com pastores alemães, num cenário que nos remete para uma atmosfera militarista, como se de um campo de concentração se tratasse. Estas duas imagens são, aliás, disruptivas, como nos explica Fernando, uma vez “que não era normal incorporar movimento na fotografia de moda nesta altura”.
Mas ao longo da visita à exposição, cuja entrada é gratuita, é fácil cruzarmo-nos com outras fotografias disruptivas, que nos ficam na memória. É o caso da imagem que Helmut Newton fotografou para a Vogue francesa, em 1975, na Rue Aubriot, onde morava, em que retrata uma jovem mulher, numa artéria deserta da capital francesa, que veste um smoking desenhado por Yves Saint Laurent. Esta é, na verdade, como nos explica Fernando, a primeira vez que uma mulher foi retratada numa revista de moda com um fato com calças – até então, as modelos eram fotografadas sempre com saias; ou da fotografia irreverente para a Calvin Klein, publicada na Vogue americana, em 1975, em que uma mulher de biquíni encara um homem submisso com uma expressão de desejo.
“A revista recebeu o cancelamento de mais de 12 mil subscrições depois da publicação desta fotografia. As pessoas não queriam ver essas coisas, diziam que era uma subversão das relações entre homens e mulher, que era inaceitável e uma inversão de papéis”, contextualiza o nosso guia. Desde a altura em que essa fotografia foi exposta ao mundo ou em que as mulheres passaram a vestir calças nas produções de moda passaram-se quase 50 anos, mas será que a forma como a mulher é encarada na sociedade mudou de igual forma? Nesta exposição, repleta de erotismo, e que poderá denotar uma certa objetificação da mulher, conhecemos o legado de Helmut Newton e temos também a oportunidade para refletir sobre como a mulher é vista nos nossos dias.
Helmut Newton – Fact & Fiction. Muelle de Batería s/n, Corunha, Galiza. Seg-qui 10h-20h; sex 10h-21h; sáb-dom 11h-21h.