Casa Portuguesa pode ser visto no Teatro Maria Matos até 7 de julho | Fotografia: Filipe Ferreira
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Casa Portuguesa é a resposta de Pedro Penim à "ameaça de conservadorismo que paira sobre a sociedade portuguesa"

Até 7 de julho, o Teatro Maria Matos recebe uma nova temporada de 'Casa Portuguesa', peça escrita e encenada pelo diretor artístico do teatro nacional em Lisboa, que é um abanão ao ideário de família, ao mesmo tempo que revisita o passado histórico recente do país.

Dois anos depois da estreia no palco do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) e de um périplo de norte a sul do país, à boleia do projeto Odisseia Nacional, Casa Portuguesa está de regresso a Lisboa para uma reposição que se estende até 7 de julho, no Teatro Maria Matos, através do Ciclo D. Maria Matos. Para Pedro Penim, desde então, “o país foi entristecendo” e esta peça sobre um ex-soldado colonial que se debate com fantasmas permite estabelecer uma relação ainda mais aguçada com uma “espécie de ameaça de conservadorismo que paira sobre a sociedade portuguesa”.

Nesta peça ficcional – musicada e interpretada por Fado Bicha (Lila Tiago e João Caçador), Carla Maciel, João Lagarto e Sandro Feliciano –  que teve como ponto de partida um diário de guerra do pai, Joaquim Penim, sobre a sua experiência em Moçambique, durante a Guerra Colonial, Pedro Penim questiona o que é a família e a dependência dela para entendermos a civilização, o que são os ideários de género, de masculinidade e de figura paterna, e confronta o espectador com todas estas interrogações, ao mesmo tempo que o faz assistir ao desmoronamento de uma casa que metaforiza a decadência e transformação de uma sociedade que remexe a medo em questões fraturantes não resolvidas da sua história recente.

Num momento em que parece haver alguma vontade política de rever e de assumir erros do passado, como a questão colonial, assistimos, por sua vez, “a uma recusa de mencionar esse período mais complexo da nossa história”, nota o encenador, ator e dramaturgo, que é também um dos fundadores do Teatro Praga, uma das companhias de teatro mais relevantes das últimas três décadas em Portugal.

“O 25 de abril não veio resolver todas as questões que a sociedade portuguesa enfrentava há muitos séculos. Houve um período de alguma euforia relacionada com a garantia da liberdade e implementação da democracia, mas há muitos comportamentos que ficaram enraizados na nossa sociedade e nas sociedades europeias com a herança do fascismo e do nazismo. É muito visível na política europeia contemporânea como essas marcas nunca foram realmente apagadas”, responde Pedro Penim a uma das nossas perguntas numa pequena entrevista sobre a reposição do espetáculo Casa Portuguesa no ano em que se celebram os 50 anos da revolução que instituiu a democracia.

Sobre o espetáculo, sumariza, “não se trata de  um apontar de culpas nem de exclusão”, mas apenas uma forma de nos pôr pensar sobre o que nos rodeia, concedendo ao teatro um papel central nesse processo.

De 2022, data da estreia para 2024, Portugal transformou-se. Como é que este espetáculo agora reposto no Teatro Maria Matos evoluiu à luz do momento vivido na sociedade portuguesa?

Este ciclo começou com Pais e Filhos [São Luiz, 2021), uma adaptação do romance de Turgueniev.  O segundo momento é Casa Portuguesa, o meu primeiro espetáculo enquanto diretor artístico do Teatro D. Maria. Entretanto já se estreou o terceiro capítulo desta trilogia que é A Farsa de Inês Pereira [ TNDM, 2023], uma adaptação da obra original de Gil Vicente. O tema que une estes três espetáculos é a instituição familiar e o impacto que essa instituição tem na nossa sociedade contemporânea. Apesar de dois do espetáculos partirem de textos canónicos – um do século XIX e outro do século XVI –, o que é certo é que os espetáculos falam sobre a nossa atualidade e sobre como a família é impactada, como se foi alterando ao longo dos tempos, e como ainda é uma célula da qual dependemos para o entendimento da nossa civilização contemporânea. Mas também sabemos que pode ser um pilar com muitas falhas. Pode ser um refúgio mas também um sítio de exclusão, violência e sofrimento. 

Respondendo à tua pergunta, o país foi entristecendo durante estes meses. A relação entre uma espécie de ameaça de conservadorismo que paira sobre a sociedade portuguesa aguça a forma como este espetáculo pode ser interventivo e contribuir para o questionamento de alguns dogmas sociais que ainda persistem.

Será que há uma legitimação desse conservadorismo de outro tempo? A História mostra o que acontece quando se opta por esse caminho  que, ainda assim, parece vir a ganhar tração em toda a Europa.

O 25 de Abril não veio resolver todas as questões que a sociedade portuguesa enfrentava há muitos séculos. Houve um período de alguma euforia relacionada com a garantia da liberdade e implementação da democracia, mas há muitos comportamentos que ficaram enraizados na nossa sociedade e nas sociedades europeias com a herança do fascismo e do nazismo. Isso é muito visível na política europeia contemporânea.Esse conservadorismo esteve sempre latente. A Europa continuou a ser um território elitista, excludente. O sistema capitalista acaba por aguçar essa injustiça social que se vive. Tudo isso nos empurrou para uma situação quase inédita, pois pensamos que nunca chegaríamos aqui. Por outro lado, há um cheiro a século XX que é muito bizarro porque parece que estamos de facto a voltar atrás.

A canção [Uma Casa Portuguesa, escrita por Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira] que se usa no espetáculo, muito manipulada pelo Estado Novo, fazia um elogio à pobreza e simplicidade. E há outro fado, Ó tempo volta para trás, também usado nesta peça, que tem essa ligação saudosista e nostálgica que nos está muito enraizada no espírito e que pode ser bela quando se fala de produção artística. O fado de Uma Casa Portuguesa, apesar de haver muita crítica, considero que é uma canção muito bem construída, mas depois todo o conteúdo ideológico acho que é facilmente manipulado e acaba por ser disso também que a peça pretende falar.

A masculinidade é um tema presente em Casa Portuguesa. Olhando para a sociedade moderna, será que o problema reside no homem enquanto figura preponderante e na forma como ele encara a sua masculinidade?

É um debate. Não há conclusões muito assertivas. É uma zona cinzenta gigantesca que o espetáculo às vezes tenta extremar e puxar quando se usa, por exemplo a hashtag “os homens são lixo”. Obviamente, há um lado provocatório que me interessa explorar. Sentir que há personagens que discordam e que, de alguma forma, podem pôr o público numa situação de fazer escolhas e de se identificar com o vilão. Há uma relação que é muito dramatúrgica no sentido da produção de cena e que acaba por convocar essas ideias um bocadinho díspares. Mas a relação com o que é um conteúdo mais familiar e da relação da família com essa herança também é posta de uma forma muito crítica mas também humorística. É preciso, de alguma maneira, olhar para este espetáculo como uma peça de teatro. É uma peça que quer ser operativa mas que, ao mesmo tempo, é um objeto artístico e deve ser entendido como tal.

O que queria perguntar é se, pessoalmente, acreditas que o problema reside na figura do homem e na forma como se apresenta perante a sociedade.

A história ainda é hegemónica e predominantemente masculina. Há uma frase que a personagem da Carla Maciel diz que acho que é muito engraçada mas muito provocatória: “Foste tu que inventaste isto tudo, agora resolve.”

De facto, a arquitetura desta sociedade, tal como a entendemos, é predominantemente masculina. Se fosse necessário fazer um tribunal e encontrar  responsáveis, tenho a certeza absoluta de que seriam responsáveis muitos mais homens do que mulheres. Esse desequilíbrio quanto mais depressa for corrigido, mais depressa a sociedade poderá ser um sítio melhor. As mulheres continuam a ser uma franja da sociedade que é altamente prejudicada no acesso em geral. Ao mesmo tempo, quero sempre acreditar que o espetáculo é conciliador. Não quer alienar os homens e não quer apontar o dedo. Quer provocar a discussão e estabelecer uma relação com a ideia de precisarmos de substituir coisas que já não nos servem.  No fundo, a casa é usada como uma metáfora para essa relação. Muitas vezes, é preciso deixar para trás. Estas ideias dessa masculinidade devem ser postas de lado pois são uma vivência geradora de violência. O apagar da violência é um bom ponto para começarmos a discussão. É factual que essa violência é predominantemente masculina e, por isso, a peça também tenta usar esse ângulo como ponto de partida para a discussão.

As perguntas e respostas deste entrevista foram editadas para efeitos de clareza e concisão.

Casa Portuguesa, Teatro Maria Matos, 9 Mai-7 Jul. Qui-sáb, 21h; dom 17h. €18-€20

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